É como Shehyn
dissera: o conhecimento é um tipo de poder.
Pode ser usado tanto para o bem quanto para o mal. Os Elric utilizavam a
Alquimia na esperança de tornar o mundo um lugar um pouco pior do que ele é. O
Sem Nome era o total inverso disso. Seja em Temerant ou em Amestris por onde
quer ele passasse gerava caos.
_Você conhece o tabu da transmutação humana! _
esbravejou Ed _ Quem você acha que é para querer quebra-lo?!
O alquimista transgressor soltou uma risada
hedionda. Por trás do sorriso incompreensível de sua máscara branca ele
perguntou com voz abafada?
_Quem
sou eu?
Ele segurou sua máscara com uma mão e a
arrancou, rompendo a tira que a prendia e a jogando longe. Nunca me esquecerei
do que meus olhos viram. Ou talvez seja mais correto dizer o que eles não
viram. Aquele homem não possuía rosto! No lugar de seus olhos, sobrancelhas,
nariz e boca havia somente mais tecido dérmico. Nem mesmo os contornos das
cavidades dos globos oculares se faziam notar. Uma longa camada de pele que se
estendia da testa ao queixo. Com a cabeça raspada, o brinco anelado e sua roupa
cinzenta era uma figura impressionante, como saída de uma história contada para
assustar crianças desobedientes.
Tempi
se comunicou comigo:
Rhinta. Mais que um homem. Menos que um
homem.
Concordância assombrada. _ respondi.
_Quem
sou eu? _ indagou o bizarro alquimista, do lado oposto do nefasto círculo _
Qual é o meu nome?
***
Eu era
considerado um jovem de diferencial, tal como vocês. Um estudante com potencial
reconhecido pelo Reitor da Universidade para vir a me tornar o futuro
Nomeador-Mor ou Alquimista-Mor. Também era um talentoso flautista e tinha
vários amigos, assim como um irmão e uma namorada que eram tudo para mim. Ele
se chamava Vazz e ela Bertel. Como eu os amava! Éramos uma família e vivemos
muitas coisas boas naquela época. Parece que tudo aconteceu ontem mas também
parece que aconteceu a séculos. Se vocês não têm certeza um dia terão. Certeza
de como esta coisa chamada vida é efêmera. Construímos relógios e calendários
mas é tudo autoengano. O tempo não pertence aos mortais. Quando vocês menos
notarem poderão quem sabe estar esfregando o chão de alguma pousada no fim do
mundo, velhos e cansados, questionando-se sobre o que foi-se dos dias antigos.
Minha vida prometia seguir esta trilha. Mas coisas aconteceram.
Era período de
férias estudantis. Vazz, Bertel e eu combinamos uma viagem para Yll. A família
de Bertel era modegana e muito rica e tudo iria ser custeado por eles. O navio
contratado era veloz e o capitão prometeu apenas quatro dias a bordo até
alcançar o destino. Uma tempestade nos pegou no terceiro. Quando acordei estava
nuns bancos de areia com o corpo como que surrado. Vi pedaços do navio ali. Não
vi meu irmão em parte alguma. E a vi ao meu lado. Bertel. Quando a toquei ela
estava fria. Já não vivia mais.
Sabem o que
Tehlu é na realidade: um par de muletas metafísicas. Estamos sozinhos no Universo.
Não há nenhuma grande Verdade. Não há nada para os homens comuns além do fim.
Mas eu nunca me imaginei como comum.
Depois de
chorar quase a noite inteira veio-me uma lembrança. Uma história que era minha
preferida na infância: Lanre e Lyra. De como Lanre, o mais poderoso guerreiro
dentre todos aqueles que brandiram espadas durante a Guerra da Criação,
enfrentou sozinho uma enorme fera de escamas negras de ferro. Aconteceu na
Batalha de Drossen Tor. Foi um combate terrível. Lanre prevaleceu contra a
besta mas não contra as feridas. Ele partiu. Mas Lyra, sua esposa, era sábia e
conhecia o nome de todas as coisas. Ela não aceitou o fado de seu amado. Então
por três vezes ela o chamou, de além, do lugar para onde se vai após o último
suspiro, a prisão que é pior do que as Portas de Pedra, de onde ninguém jamais
escapara depois de entrar. E Lanre ouviu. Ele voltou da morte e se levantou,
vivo em toda a sua força, e guerreou muitas vezes mais ao lado de seus bravos
homens e de Lyra, sua furiosa paixão.
Agora a
racionalidade de vocês questionará: o que tem a ver uma coisa com a outra? Eu
lhes direi. Quando amamos de verdade a perda tem um gosto inaceitável para o
espírito. Com o corpo inerte de Bertel em meus braços eu recusei, com todo o
meu ser, aceitar sua trágica sina. Naquela altura da minha vida eu já sabia
alguns nomes. Então, inspirado pela lenda de Lanre e Lyra, desesperado em todos
os limites e abandonando todo o bom senso, eu chamei minha namorada da
morte.
Enquanto
pronunciava seu nome profundo minhas lágrimas desciam quentes. Não sei por
quanto tempo isso durou e nem como eu, alguém que não tinha nem mesmo um
guílder, o fez. O que sei é que ao raiar do sol Bertel abriu os olhos e falou
comigo. Alegria é uma palavra pobre para descrever o que senti naquele momento.
Aquilo não havia sido um milagre. Milagres envolvem o divino. O que ali se deu
foi magia. Das mais antigas e poderosas. Como fui capaz daquilo naquelas
condições? Até hoje me pergunto. Eu não contei para Bertel o que havia feito. Não
havia lógica alguma para nada daquilo. Eu era apenas um Re’lar. Como poderia
contar? Mantive segredo.
Por sorte
fomos resgatados naquele mesmo dia por um navio mercante. Pensamos que meu
irmão estava morto mas ao chegar a Yll depois de alguns dias o reencontramos,
vivo e bem cuidado. Ele havia se perdido de todos quando nosso navio virara.
Ficou à deriva por três dias sobre uma tábua para depois ser resgatado por uma
tripulação de baleeiros. Dias agradáveis se seguiram em Yll.
Mas
quanto retornamos para a Universidade o pior aconteceu. Citando o próprio
Lanre “qualquer
alegria que cresça aqui é prontamente sufocada pelas ervas daninhas”.
Meu patrono, o
Nomeador-Mor era um arcanista formidável. Ele sabia o nome de muitas coisas.
Bastou seus olhos pousarem sobre Bertel para ele descobrir o que eu fizera. E
ele desfez. Diante de mim. Com sua palavra ele mandou meu amor novamente para o
sono da morte.
Fui acusado de
maleficiaria diante de todos os professores. Iria ser chicoteado e expulso. O
castigo foi aplicado em sigilo. Recebi as chibatadas. Quando terminou deixei
fluir. O ódio. Violento. Venenoso. Vingador. Aquele sentimento elevou meu poder
de uma maneira descomunal. O que se registrou do que houve foi depois apagado.
Eu mutilei dois professores e emparedei três deles vivos, incluindo meu mestre
nomeador. Ele não sabia o nome da pedra. Fraco imbecil. Quando conseguiram
fazer uma abertura era tarde demais. Mortos por asfixia. O pânico deve os ter
feito esgotar o ar depressa demais. É por isso que há alas do Magno que
desapareceram nas reformas.
Consegui fugir
pelos subterrâneos. Atravessando aqueles túneis tive uma súbita compreensão: eu
não havia ressuscitado Bertel de maneira perfeita, como Lanre foi por Lyra.
Havia faltado algo em nosso caso e por isso meu professor conseguira anular meu
feito. Então me decidi: passaria por cima de tudo e de todos mas aprenderia uma
maneira de unir o nome de Lyra a um corpo de modo que nem um moldador em pessoa
poderia separá-los!
Em Imre entrei
em contato com meu irmão mas ele optou por me abandonar depois que eu fizera.
Não o culpei. Parti sozinho. Me tornei um fugitivo da Lei Férrea. Cessei de
usar o nome pelo qual era chamado. Usei muitos outros. Também abandonei a
moral. Ela representava uma limitação agora. Depois de muito ameaçar, torturar
e matar por informações descobri sobre a alquimia de Amestris e o mito do Homúnculo, um perfeito ser humano criado
de forma artificial. Aquele podia ser o meio para o fim que eu almejava.
Naquela nova
nação comecei a estudar sua técnica alquímica, tão diferente da abordagem do
Arcanum. Aprendi sobre simbolofísica, geometria energética, as leis da
transmutação, quimerismo e adentrei na nebulosa ciência de dar vida a um
Homúnculo. Soube que uma Pedra Filosofal seria necessária para o processo. A
muito custo consegui cria-la mas ela me foi roubada por dois membros de um
grupo secreto. Eles tinham o símbolo ouroboros
tatuado no corpo. Não eram pessoas normais. Possuíam habilidades
espantosas. Um deles devorou vivo a quimera a meu serviço enquanto a outra me
atravessou impiedosamente com lanças que saiam de seus dedos. Eles me deixaram
para sangrar até a morte. Tudo teria acabado ali mas soldados chegaram. O
exército havia me rastreado. Fui salvo pelos médicos mas condenado a pena
perpétua. Os anos no cárcere foram dolorosos. Eu estava impossibilitado de usar
alquimia para escapar pois minhas mãos permaneciam frequentemente presas. Mas
eu já havia chamado o nome da pedra uma vez. Só precisei reaprender a
enxergá-lo. Quando consegui incitei uma rebelião e escapei durante o tumulto
criando uma saída na muralha. Corri por bosques até sentir que meus pulmões
iriam explodir. Mas eu precisava me distanciar o máximo possível dos arredores
da prisão.
Era noite de
lua nova. Me lembro de haver cruzado um grande monólito de rocha. Depois disso
percebi o ambiente mudar. Me vi rodeado por neblina e árvores altas como torres
de castelos por cujas copas começou a passar uma cálida luminosidade de dia
nublado. Resumindo, eu adentrara sem querer na terra dos Encantados como fiquei sabendo mais tarde. Ali aprendi muitos
mistérios. Aprendi alguns grandes fatos ocultos, aprendi o que nem mesmo os
alquimistas sabem sobre alquimia, também muitos mistérios sobre os nomes, sobre
a magia dos faeries além de verdades
sobre mim mesmo. Tudo isto com um estranho ser que se ocultava entre os galhos
de uma grande árvore. Por receio nunca me aproximei demais então nunca descobri
sua aparência. Conversava mais que todas as mulheres do mundo juntas. Seu nome
era Chtaeh. Acho que acabei pegando
sua mania de tagarelar.
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