sábado, 13 de agosto de 2016

Palavra de Aço - Capítulo 10: Mais que um homem e menos que um homem



É como Shehyn dissera: o conhecimento é um tipo de poder.  Pode ser usado tanto para o bem quanto para o mal. Os Elric utilizavam a Alquimia na esperança de tornar o mundo um lugar um pouco pior do que ele é. O Sem Nome era o total inverso disso. Seja em Temerant ou em Amestris por onde quer ele passasse gerava caos. 
 _Você conhece o tabu da transmutação humana! _ esbravejou Ed _ Quem você acha que é para querer quebra-lo?! 
 O alquimista transgressor soltou uma risada hedionda. Por trás do sorriso incompreensível de sua máscara branca ele perguntou com voz abafada? 
            _Quem sou eu? 
 Ele segurou sua máscara com uma mão e a arrancou, rompendo a tira que a prendia e a jogando longe. Nunca me esquecerei do que meus olhos viram. Ou talvez seja mais correto dizer o que eles não viram. Aquele homem não possuía rosto! No lugar de seus olhos, sobrancelhas, nariz e boca havia somente mais tecido dérmico. Nem mesmo os contornos das cavidades dos globos oculares se faziam notar. Uma longa camada de pele que se estendia da testa ao queixo. Com a cabeça raspada, o brinco anelado e sua roupa cinzenta era uma figura impressionante, como saída de uma história contada para assustar crianças desobedientes. 
             Tempi se comunicou comigo:
            Rhinta. Mais que um homem. Menos que um homem.  
            Concordância assombrada. _ respondi.
            _Quem sou eu? _ indagou o bizarro alquimista, do lado oposto do nefasto círculo _ Qual é o meu nome? 

***

Eu era considerado um jovem de diferencial, tal como vocês. Um estudante com potencial reconhecido pelo Reitor da Universidade para vir a me tornar o futuro Nomeador-Mor ou Alquimista-Mor. Também era um talentoso flautista e tinha vários amigos, assim como um irmão e uma namorada que eram tudo para mim. Ele se chamava Vazz e ela Bertel. Como eu os amava! Éramos uma família e vivemos muitas coisas boas naquela época. Parece que tudo aconteceu ontem mas também parece que aconteceu a séculos. Se vocês não têm certeza um dia terão. Certeza de como esta coisa chamada vida é efêmera. Construímos relógios e calendários mas é tudo autoengano. O tempo não pertence aos mortais. Quando vocês menos notarem poderão quem sabe estar esfregando o chão de alguma pousada no fim do mundo, velhos e cansados, questionando-se sobre o que foi-se dos dias antigos. Minha vida prometia seguir esta trilha. Mas coisas aconteceram.  
Era período de férias estudantis. Vazz, Bertel e eu combinamos uma viagem para Yll. A família de Bertel era modegana e muito rica e tudo iria ser custeado por eles. O navio contratado era veloz e o capitão prometeu apenas quatro dias a bordo até alcançar o destino. Uma tempestade nos pegou no terceiro. Quando acordei estava nuns bancos de areia com o corpo como que surrado. Vi pedaços do navio ali. Não vi meu irmão em parte alguma. E a vi ao meu lado. Bertel. Quando a toquei ela estava fria. Já não vivia mais.
Sabem o que Tehlu é na realidade: um par de muletas metafísicas. Estamos sozinhos no Universo. Não há nenhuma grande Verdade. Não há nada para os homens comuns além do fim. Mas eu nunca me imaginei como comum. 
Depois de chorar quase a noite inteira veio-me uma lembrança. Uma história que era minha preferida na infância: Lanre e Lyra. De como Lanre, o mais poderoso guerreiro dentre todos aqueles que brandiram espadas durante a Guerra da Criação, enfrentou sozinho uma enorme fera de escamas negras de ferro. Aconteceu na Batalha de Drossen Tor. Foi um combate terrível. Lanre prevaleceu contra a besta mas não contra as feridas. Ele partiu. Mas Lyra, sua esposa, era sábia e conhecia o nome de todas as coisas. Ela não aceitou o fado de seu amado. Então por três vezes ela o chamou, de além, do lugar para onde se vai após o último suspiro, a prisão que é pior do que as Portas de Pedra, de onde ninguém jamais escapara depois de entrar. E Lanre ouviu. Ele voltou da morte e se levantou, vivo em toda a sua força, e guerreou muitas vezes mais ao lado de seus bravos homens e de Lyra, sua furiosa paixão. 
Agora a racionalidade de vocês questionará: o que tem a ver uma coisa com a outra? Eu lhes direi. Quando amamos de verdade a perda tem um gosto inaceitável para o espírito. Com o corpo inerte de Bertel em meus braços eu recusei, com todo o meu ser, aceitar sua trágica sina. Naquela altura da minha vida eu já sabia alguns nomes. Então, inspirado pela lenda de Lanre e Lyra, desesperado em todos os limites e abandonando todo o bom senso, eu chamei minha namorada da morte. 
Enquanto pronunciava seu nome profundo minhas lágrimas desciam quentes. Não sei por quanto tempo isso durou e nem como eu, alguém que não tinha nem mesmo um guílder, o fez. O que sei é que ao raiar do sol Bertel abriu os olhos e falou comigo. Alegria é uma palavra pobre para descrever o que senti naquele momento. Aquilo não havia sido um milagre. Milagres envolvem o divino. O que ali se deu foi magia. Das mais antigas e poderosas. Como fui capaz daquilo naquelas condições? Até hoje me pergunto. Eu não contei para Bertel o que havia feito. Não havia lógica alguma para nada daquilo. Eu era apenas um Re’lar. Como poderia contar? Mantive segredo. 
Por sorte fomos resgatados naquele mesmo dia por um navio mercante. Pensamos que meu irmão estava morto mas ao chegar a Yll depois de alguns dias o reencontramos, vivo e bem cuidado. Ele havia se perdido de todos quando nosso navio virara. Ficou à deriva por três dias sobre uma tábua para depois ser resgatado por uma tripulação de baleeiros. Dias agradáveis se seguiram em Yll. 
Mas quanto retornamos para a Universidade o pior aconteceu. Citando o próprio
Lanre “qualquer alegria que cresça aqui é prontamente sufocada pelas ervas daninhas”. 
Meu patrono, o Nomeador-Mor era um arcanista formidável. Ele sabia o nome de muitas coisas. Bastou seus olhos pousarem sobre Bertel para ele descobrir o que eu fizera. E ele desfez. Diante de mim. Com sua palavra ele mandou meu amor novamente para o sono da morte. 
Fui acusado de maleficiaria diante de todos os professores. Iria ser chicoteado e expulso. O castigo foi aplicado em sigilo. Recebi as chibatadas. Quando terminou deixei fluir. O ódio. Violento. Venenoso. Vingador. Aquele sentimento elevou meu poder de uma maneira descomunal. O que se registrou do que houve foi depois apagado. Eu mutilei dois professores e emparedei três deles vivos, incluindo meu mestre nomeador. Ele não sabia o nome da pedra. Fraco imbecil. Quando conseguiram fazer uma abertura era tarde demais. Mortos por asfixia. O pânico deve os ter feito esgotar o ar depressa demais. É por isso que há alas do Magno que desapareceram nas reformas. 
Consegui fugir pelos subterrâneos. Atravessando aqueles túneis tive uma súbita compreensão: eu não havia ressuscitado Bertel de maneira perfeita, como Lanre foi por Lyra. Havia faltado algo em nosso caso e por isso meu professor conseguira anular meu feito. Então me decidi: passaria por cima de tudo e de todos mas aprenderia uma maneira de unir o nome de Lyra a um corpo de modo que nem um moldador em pessoa poderia separá-los! 
Em Imre entrei em contato com meu irmão mas ele optou por me abandonar depois que eu fizera. Não o culpei. Parti sozinho. Me tornei um fugitivo da Lei Férrea. Cessei de usar o nome pelo qual era chamado. Usei muitos outros. Também abandonei a moral. Ela representava uma limitação agora. Depois de muito ameaçar, torturar e matar por informações descobri sobre a alquimia de Amestris e o mito do Homúnculo, um perfeito ser humano criado de forma artificial. Aquele podia ser o meio para o fim que eu almejava. 
Naquela nova nação comecei a estudar sua técnica alquímica, tão diferente da abordagem do Arcanum. Aprendi sobre simbolofísica, geometria energética, as leis da transmutação, quimerismo e adentrei na nebulosa ciência de dar vida a um Homúnculo. Soube que uma Pedra Filosofal seria necessária para o processo. A muito custo consegui cria-la mas ela me foi roubada por dois membros de um grupo secreto. Eles tinham o símbolo ouroboros tatuado no corpo. Não eram pessoas normais. Possuíam habilidades espantosas. Um deles devorou vivo a quimera a meu serviço enquanto a outra me atravessou impiedosamente com lanças que saiam de seus dedos. Eles me deixaram para sangrar até a morte. Tudo teria acabado ali mas soldados chegaram. O exército havia me rastreado. Fui salvo pelos médicos mas condenado a pena perpétua. Os anos no cárcere foram dolorosos. Eu estava impossibilitado de usar alquimia para escapar pois minhas mãos permaneciam frequentemente presas. Mas eu já havia chamado o nome da pedra uma vez. Só precisei reaprender a enxergá-lo. Quando consegui incitei uma rebelião e escapei durante o tumulto criando uma saída na muralha. Corri por bosques até sentir que meus pulmões iriam explodir. Mas eu precisava me distanciar o máximo possível dos arredores da prisão. 
Era noite de lua nova. Me lembro de haver cruzado um grande monólito de rocha. Depois disso percebi o ambiente mudar. Me vi rodeado por neblina e árvores altas como torres de castelos por cujas copas começou a passar uma cálida luminosidade de dia nublado. Resumindo, eu adentrara sem querer na terra dos Encantados como fiquei sabendo mais tarde. Ali aprendi muitos mistérios. Aprendi alguns grandes fatos ocultos, aprendi o que nem mesmo os alquimistas sabem sobre alquimia, também muitos mistérios sobre os nomes, sobre a magia dos faeries além de verdades sobre mim mesmo. Tudo isto com um estranho ser que se ocultava entre os galhos de uma grande árvore. Por receio nunca me aproximei demais então nunca descobri sua aparência. Conversava mais que todas as mulheres do mundo juntas. Seu nome era Chtaeh. Acho que acabei pegando sua mania de tagarelar. 

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