sábado, 13 de agosto de 2016

Palavra de Aço - Capítulo 2: Conversas e mensagem


O próximo período letivo da Universidade só começaria daqui a algumas semanas. Agora, com o patrocínio anônimo do maer eu não precisava mais trabalhar constantemente na Ficiaria para me sustentar. Isso me dava tempo de fazer outras coisas como visitar Auri, pesquisar sobre o Chandriano no Arquivo e praticar minha música. Auri porém andava em silêncio nos últimos dias. Fazia algum tempo que eu não a via. Minha investigação sobre o grupo que assassinara minha trupe continuava difícil. Minha busca sempre culminava no mesmo: retalhos folclóricos que algum pesquisador reunira a mais de um século. Nada de novo. Mas minha música ia indo maravilhosamente bem. Parece que depois do tempo que passei em Haerth sem tocar, controlando sistematicamente minhas emoções e aprendendo a linguagem dos ademrianos, dera-me afinal uma maior sensibilidade artística e renovada perícia musical. Frequentemente eu me apresentava na Eólica. E depois dos rumores que vinham de Vintas eu estava realmente começando a ficar popular, até mesmo entre a classe nobre. Ambrose certamente não estaria contente.
Naquela noite eu havia tocado A Balada de Alimo, uma canção que havia conhecido em minha viagem de navio. Coloquei toda a paixão em minhas mãos ao executá-la. Eu queria impressioná-la. Ela. Quando acabei todos no ambiente me cobriram com um manto de aplausos. Fiz uma mesura em agradecimento, guardei meu alaúde em seu estojo e desci do palco. Os costumeiros admiradores me receberam com elogios, apertos de mãos e tapinhas nas costas. Não ocultarei que houveram sim alguns olhares indecorosos por parte de algumas donzelas. Mas eu era como a água, me movimentava fluindo entre as pessoas, num jogo social perfeito. 
Até que topei com um rosto desconhecido a mim entre os costumeiros frequentadores da Eólica. Sendo mais detalhista não tratava-se exatamente de um rosto. O homem usava uma máscara, uma recente moda entre alguns nobres apreciadores da arte. Eles ocultavam suas identidades e quando encontravam alguém que julgassem talentoso se tornavam um tipo de mecenas anônimo. Dizia-se que enxergavam um charme intelectual nisto. Os artistas patrocinados não reclamavam havendo moedas a tilintar. 
_Você tem um dom rapaz! Esta é uma composição de marinheiros e você a executou precisamente como um, expressando todo o sentimento de um velho lobo do mar. Foi formidável! _ elogiou ele numa voz enérgica, abafada pela máscara.
_Fico lisonjeado de ter despertado vosso agrado milorde. Tocar como um navegante para mim já é suficiente. Amo a terra firme como se ama a uma mãe e não pretendo tão já deixar seu seio para entrar em um navio novamente. _ respondi atuando. 
_Naufrágio?
_Uma vez. 
_Também já atravessei o mesmo. É incontestável como nunca mais somos os mesmos depois da experiência. _ percebi dor em sua fala.
O nobre mascarado era alto, de compleição atlética e tez levemente bronzeada. Sua cabeça era raspada e usava uma argola prateada em uma das orelhas. Devia ser oriundo das ilhas. Trajava um elegante conjunto cinza escuro, botas de caçada e uma capa azul marinho. Sua máscara era branca com o desenho de raízes de árvore na parte da testa. Um sorriso enigmático estava entalhado na boca. Ela se prendia à cabeça nua dele por uma tira. Aparentava ter os seus quarenta anos conservando ainda uma jovialidade intrínseca. 
É estranho dialogar com alguém que não se sabe quem é.  
_Kvothe. Nunca vi outro com o mesmo nome. É muito original. Significa saber estou certo? _ perguntou ele. 
_Correto. O sr. é um linguista?
_Digamos que eu gosto de aprender muitas coisas. Como você. Soube que além de excelente músico é estudante da Universidade. 
_ Exatamente milorde. Desde pequeno já era um admirador dos arcanistas e sonhava em estudar para me tornar um. Foi um desafio mas consegui ser admitido e tenho aprendido muitas coisas úteis ultimamente. 
_Interessante. Sabe rapaz, eu deixarei a cidade amanhã. Meus empreendimentos aqui estão quase finalizados. Me considero um visionário e meu projeto principal demanda expansão.  É uma empreitada grande demais para mentes pequenas. Acontece que vislumbro em você uma qualidade Kvothe: ousadia. E é alguém com essa qualidade que eu desejo ao meu lado para sonhar este sonho junto comigo, ajudando-me a realizálo. Um ato artístico supremo! Venha comigo, garanto que dinheiro nunca mais será uma preocupação. O que me diz?
Eu não sabia como responder. Era um convite muito inesperado. Aquele homem devia ser um grande produtor musical ou teatral que estava organizando um grandioso número, desses que se leva anos a fio para se preparar mas que depois acabam se eternizando como obras primas da cultura. E eu estava sendo convidado a me envolver naquilo! Eu e meu alaúde seríamos famosos em toda a República! Como alguém como eu, com um enorme histórico de perdas na vida, não ficaria seduzido pela ideia de finalmente ter sucesso consistente em algo significativo. Sim, admito, cogitei a possibilidade. Mas isso foi o que uma das divisões da minha mente pensou. 
Explicarei melhor. Quando se usa demasiadamente o Alar e com muita intensidade (como eu vinha fazendo com cada vez mais frequência) ocorre algo: a mente começa a se dividir deliberadamente por vezes e podemos passar por o que se denomina de Vontade Volátil, um estado onde um quantitativo de energia psíquica bruta resultado do choque entre pensamentos conflitantes das divisões da mente feitas sem a devida separação através da concentração que esta prática demanda, circula livre pelo inconsciente. Se essa energia atuar por muito tempo ela tem o potencial de causar sérios danos ao funcionamento mental, podendo obliterar mecanismos fundamentais da consciência. A Vontade Volátil é a principal causa de problemas psiquiátricos entre os arcanistas. Eu atribuía os comportamentos malucos de Mestre Elodin a uma mente que se dividiu tanto que literalmente “trincou”. O único modo de evitar este processo é deixar a mente repousar entre os usos da “convicção do rebenque”.
 Deixando esta conceituação, a outra divisão de minha mente começou a pesar tudo o que eu teria de abandonar para seguir meu admirador de face velada. Eu teria de deixar a Universidade e toda a fonte inesgotável de aprendizado que havia ali. Teria que romper vínculos com Simmon, Willem, Feila e todos os amigos que eu conquistara ali. Também não poderia continuar minhas pesquisas no Arquivo sobre os mistérios que cercavam os
Amyr, a família Lackless ou Os Sete. E o mais difícil de tudo: deixando Imre, eu não saberia quando poderia vir a reencontrá-la. E eu já sabia como isto seria extremamente ruim. Concentrei-me e unifiquei minha mente, solidificando minhas ideias. Isto tudo pareceram-me longas horas mas factualmente não passaram mais do que alguns instantes. O tempo psicológico é diferente do cronológico. Quando estava resoluto respondi ao meu nobre admirador não identificado:
 _Milorde, é uma honra receber tal proposta. Uma honra que alguém como eu não merece e ainda assim terá de recusar infelizmente. Não duvido da magnitude do trabalho que o sr. está desenvolvendo mas há razões pelas quais não posso abandonar este lugar ainda. Há certas coisas que me impedem de partir. Além do mais eu já possuo um mecenas e penso que ele ficaria descontente se eu o substituísse repentinamente. Sinceramente, me perdoe por não poder aceitar.   
  Por detrás de sua máscara eu não sabia qual era a expressão do rosto do mecenas anônimo então não podia saber como ele recebera a declinação de seu convite. Sua linguagem corporal nada me dizia, era puramente neutra.
_É uma pena... _ disse _ Mas eu o compreendo. Mulheres. Elas têm um tremendo poder em nos fixar a lugares ou fazer movermo-nos rumo a outras direções. Foi uma que lançou-me em minha cruzada em busca do êxtase soberano. O mundo nos aguarda, sigamos nossas ambições! Adeus Kvothe! 
_Adeus. _ acenei, já olhando para a capa daquele sujeito intrigante enquanto ele se voltava, deixando-me.  
            Como ele soubera que uma mulher era um dos mais fortes motivos pelos quais eu não queria deixar aquelas terras por enquanto? Era como se ele tivesse enxergado dentro de mim! Ou então era só um homem experiente em ser homem. Continuei fazendo média pelo salão. 
_Você está cada vez melhor meu jovem! _ falou uma voz próxima.
            Quando me voltei encontrei o Conde Threipe.
            _Muito obrigado! _ agradeci _ Como vai?
 _Ultimamente bastante preocupado como todos os mecenas, artistas e até artesãos de instrumentos dessa cidade estão. Não é pra menos...
            _O que o sr. quer dizer?
            _Venha... vamos falar deste assunto bebendo algo. 
 Alguns minutos depois Threipe e eu estávamos numa mesa num canto da Eólica com copos de cerveja amanteigada. 
 _Estão ocorrendo crimes em Imre. Raptos, para ser mais preciso. Começaram a pouco mais de um mês. Pessoas de todas as classes estão desaparecendo. Até um mendigo que vivia numa praça aqui perto foi levado. Pobre diabo! Não é à toa que os estudantes da Universidade nem andam mais cruzando o rio com tanta frequência. Essa sombra de insegurança afasta qualquer viajante. Os comerciantes e artistas que o digam. Isto tudo é muito ruim para os negócios. Até os latoeiros estão ficando raros!
 Aquela realidade podia ser percebida claramente para um frequentador rotineiro da Eólica. Não estava movimentado como de costume. Me senti mal. Agora que eu tinha dinheiro e tempo livre estava levando uma vida tão confortável que nem chegara a saber da desgraça daquela cidade pela qual eu tinha um carinho especial. O conde continuou:
_E o pior é que o condestável acha todos estes desaparecimentos estão relacionados pois seguem o mesmo padrão. Sempre uma bizarra gosma amarela é encontrada no local. Os arcanistas analisaram o material mas só puderam concluir que é um composto alquímico que gera uma paralisia total do corpo por algumas horas quando em contato com a pele. Devem utilizar isso para prevenir que as vítimas resistam. Por Tehlu! Me arrepio só de pensar!
_É um problema bastante sério... _ foi só o que soube responder naquele momento.
Conversamos mais, sobre variados assuntos. Depois de uma hora eu me despedi de Threipe e perambulei pelos andares do lugar, entre o povo. Não encontrei quem procurava. Resolvi ir embora. Na saída fui interpelado por Deoch, o porteiro da Eólica, com seu sotaque ceáldico:
_Não a encontrou hoje garoto?
_Infelizmente não. Você sabe como ela é esquiva. 
_Se sei! Ela deve estar mantendo uma distância segura por causa dessa onda de sequestros. Quando pegarem o desgraçado que está fazendo isso é certo que você voltará a vê-la. 
_Conto com isso.
_Foi uma bela canção a de hoje!
_Obrigado. Ouvi no mar. 
_Foi a única que ouviu?
_Não. Há mais. Vou ensaiá-las mais um pouco antes de tocar.
_Não nos deixe esperando amigo!
_Claro que não. Boa noite Deoch.
_Boa noite garoto.
Denna. Mais um dia sem vê-la. Mais um dia sem caminhar ao seu lado. Mais um dia sem escutar sua voz. Mais um dia sem sentido para mim. Não importava se me deitei com Feluriana, se me incendiei nos braços de Losi, se dei minha “raiva” a Penthia ou qualquer outra coisa que houvesse tido com as estudantes ou moças de Imre. O que eu queria de verdade era Denna ao meu lado. Mas numa das últimas vezes em que havíamos nos encontrado, no rio, eu parecia ter estragado tudo entre nós novamente com a minha língua comprida. Afinal, acho que estava correto em me autoconsiderar um grande imbecil.
Eu ia pela rua pensando nessas coisas quando um menino sujo me abordou.
_Você que é o Vóti? _ perguntou. 
_É Kvothe! _ respondi. Eu não ligava para mentiras a meu respeito mas detestava quando erravam meu nome.
_Que seja! Tenho um bilhete para você. São três talentos.
_Você está louco?!Três talentos de gorjeta?! Pareço-me com o rei de Vintas?
_Que Encanis e seus demônios o levem! Eu sei que você tem ouro! Não seja sovina com um órfão!
_Ora seu... _ irritei-me.
Mas aquela criança me fez me lembrar do meu tempo em Tarbean. Senti a irritação se diluir em compreensão.
_E o que me garante que depois que eu te pagar você não vai sair correndo com o dinheiro e me deixar com um papel em branco nas mãos? _ questionei. Usei muito aquela em meu passado nas ruas.
_Eu fico até você ler o bilhete todo. Juramento de Cirida!
_Você ao menos sabe quem são os Ciridas?
_Bem, uns dizem...
_Deixe pra lá. _cortei.
Dei-lhe as moedas, abri o bilhete e o li.

Kvothe
Não. Eu não estou te escrevendo uma carta de amor embora esse seu rostinho bonito me atraia um pouco. E eu percebo que você olha meu decote quando conversamos. Mas deixemos isto por ora. Venha ver-me imediatamente. Estou com duas visitas e uma terceira que não sei se posso chamar de pessoa propriamente dita. Há algo urgente e sério a ser tratado. Você acabou entrando no jogo. Não temos tempo. Venha sem demora. Devi

Eu já havia acertado todos os meus débitos com Devi. O que seria aquela carta esquisita? Eu teria que ver por mim mesmo. 
_Obrigado. _ agradeci ao menino _ pode ir agora.
Ele permaneceu parado a minha frente.
_O que foi?
_Posso fazer uma pergunta?
_Vá em frente.
_É verdade que você dorme apenas duas horas por noite?
_É mentira. 
Ele pareceu desapontado. 
_Uma hora no máximo _ menti.
             Seus olhos brilharam. Saí com minha shaed ondulando atrás de mim.

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