sábado, 13 de agosto de 2016

Palavra de Aço - Capítulo 14: Noite sem luar


 _Temos terrível problema agora. _ disse alguém. 
Quando me dei conta Tempi estava agachado junto a mim, apoiando-se em sua espada. Ele improvisara com algumas tiras de couro de seu traje uma apertada amarra para conter o sangramento de seu severo ferimento no ombro. Ele respirava com dificuldade, tinha a testa úmida de suor e estava pálido. Ali perto, no lugar onde ele tombara pude ver uma farta poça de sangue. Somente o fato de ele estar se conservando consciente era incrível. 

_Duvidei que você estivesse vivo. _ falei.

_Me movi no último instante para não ser atingido em pontos vitais. É preciso mais do que uma estocada para acabar com um ademriano. _ Tempi sacudiu o punho fechado com vigor.

Alphonse então se uniu a nós. Ao seu lado estava Ed, sem o inchaço anterior mas ainda com a face severamente machucada. 

_Eu usei um medicamento cedido a nós pelo Fisiopata-Mor da Universidade. Foi muito efetivo. _ disse a armadura _ Pena que perdi a bota e parte da calça do Ed na transmutação que fiz para soltá-lo. 

 O tecido da perna esquerda da calça de Ed havia desaparecido do joelho para baixo deixando à mostra o membro mecânico descalço. O Alquimista de Aço disse:

_Está tudo bem Al. O importante é que você está inteiro. Mas afinal, o que foi que aconteceu com você e as quimeras lá fora?

_Nem queira saber. Lutei como em um Torneio do Inferno! Francamente... se estivesse com meu corpo de verdade não tenho certeza de que estaria conversando com vocês agora.

De súbito nuvens bloquearam a luz estelar que adentrava pelo grande buraco no teto do templo tehliniano. Um trovão ribombou ao longe e um vendaval entrou pela porta da igreja. 

_Como ousam ignorar minha terrível presença humanos fétidos? _ questionou Susph levitando, nua e fatal. 

Era ela. Estava de alguma forma alterando o clima. Não ouvi nada diferente. Não se tratava de Nomeação.  Era Magia Elemental. Coisa que eu ouvira ao redor das fogueiras dos Ruh e segundo só os deuses eram capazes de realizar.

_Tempi, como se mata um deus? _ perguntei. 

_Deus?! Me recuso a acreditar em de tal coisa como cientista! _ afirmou Ed cruzando os braços, querendo demonstrar superioridade. 

_Deixe disso mano. _ interveio Alphonse _ Como você pode dizer isto depois do Portão?  

_Calem-se todos. _ disse Tempi _ Não sei como matar um deus. E mesmo que soubesse não contaria. Matar deuses não é da Lethani. Mas eu percebo. Susph não é deusa. Deuses não tem corpo falso vindo de arte profana. Tampouco é um rhinta. É menos que uma mulher mas é mais que um demônio. Coisa pior. Talvez até pior que Os Sete Traidores. 

O vento e os trovões eram cada vez mais fortes. Com muito custo e ainda me sentindo péssimo consegui me pôr de pé. Meus olhos se detiveram em Susph. De imediato senti-me completamente dominado pela beleza dela, de uma maneira parecida como fui ao ver Feluriana pela primeira vez. Sua tez morena era como cobre polido, seus seios eram dois melões graúdos e seus lábios, uma proposta irrecusável. Mas toda e qualquer atração era quebrada abruptamente ao se cruzar um olhar com ela. Nas duas grandes ametistas que eram os olhos de Susph havia uma singularidade intimidadora, que claramente não era deste mundo e nem de Fae. 

Havíamos fracassado em nossa missão. Fomos surrados de modo humilhante, deixamos treze vidas inocentes se perderem e agora um poder descomunal e maléfico fora liberto. Tudo estava perdido. 

A igreja toda começou a tremer violentamente. Susph estava provocando um terremoto. 

_Temos que sair daqui! _ gritou Alphonse.

_Deixem isso comigo. _ falou Ed e transmutou um longo túnel de pedra que dava para os fundos do prédio _ Vamos!

Enquanto corríamos desesperadamente ouvíamos pedaços do telhado se chocarem com o exterior rochoso da passagem. Bastou que ganhássemos o ar livre para que a igreja toda ruísse com um estrondo esmagador as nossas costas, levantando uma espessa nuvem de pó. Tomamos um pouco mais de distância e ficamos a observar a poeira baixar. 

Eu ia descer ao Coração de Pedra para tentar ter uma mínima ideia mas colocando a mão sobre meu ombro Tempi disse:

_Não pensar. Cabeça é inútil. Coração é inútil. Nossa melhor arma agora é a Lethani. Deixe o conhecimento que é mais profundo te guiar. 

Tempi tinha razão. Só a sabedoria da Lethani poderia nos indicar um caminho de ação agora. 

Concordância respeitosa. _ respondi em adêmico.

Começou a chover. Os trovões faziam coro. Ed aludiu:

_Em Amestris houve um certo alquimista que inventou uma máquina que criava tempestades. Ela era movida por uma pedra filosofal falsa. Causou muitos estragos o fulano. Teve o erro de querer confrontar o Exército. Coitado... Mustang acabou com ele com máquina e tudo. Mas isso aqui está em outro patamar. É algo com o qual nem mesmo o Alquimista das Chamas poderia lidar sozinho.

Entrei no estado mental chamado Folha em Rodopio, uma prática fundamental da Ketan. Esvaziei-me de pensamentos até ter a psique limpa e clara. Pelo que eu entendia de Psicologia esta técnica de meditação atuava através do Inconsciente, uma instância mais funda da mente onde tudo o que forma quem somos (lembranças, afetos, pulsões) permanece enterrado sob um “lodo”. O Inconsciente trabalha de uma forma que procura proteger a mente de experiências consideradas negativas, buscando sempre evitar o desprazer e atingir o prazer. A maioria dos comportamentos humanos tem raiz inconsciente e nisso surge o questionamento de até que ponto somos verdadeiramente os autores de nossas próprias escolhas. 

Mas os ademrianos são ensinados desde a infância a ter autocontrole e a Lethani, sua filosofia, é totalmente avessa a dinâmica do Inconsciente. Nela não se busca atingir o prazer ou evitar o desprazer. Se busca tomar a decisão certa. Não se age baseado no passado ou no futuro. Se age centrado no presente. Nela a dor não é distorcida afim de não ser plenamente sentida. Ela é experimentada em todas as suas dimensões, sendo objeto de contínua reflexão que conduz a um autêntico amadurecimento. Isto era Lethani. Era dessa postura de espírito que provinha a real força dos ademrianos. E eu era do Ademre. 

As gotas fizeram a poeira do desabamento da igreja assentar mais depressa. Susph veio voando e pousou no chão a uns cinquenta metros de nós. Completamente molhada ela era ainda mais arrebatadora aos olhos. Com o sabor de uma bebida envenenada ela cantarolou:



Faço chuva de água
Faço chuva de vento 
Quanto até chover sangue

Terá você ainda por tempo?



 Sim. Com a certeza. Ela era uma coisa como o Chtaeh: má e velha como a Terra. Se ela conseguisse pagar sua dívida e libertá-lo da árvore onde ele era mantido o mundo estaria em maus lençóis. 

             _Nós dois. _ Tempi apontou para mim e para si _ Atacar pela frente.

            _Certo. _ Concordei.

  _Al, vamos rodear e atacar por trás. _ comandou Ed tirando seu sobretudo e só permanecendo com uma camiseta preta sem mangas _ “Manobra Homero” Combinado?

            _Combinado mano! 

            Se aquela fosse uma situação comum minha curiosidade incurável certamente me levaria a perguntar o que era a “Manobra Homero”. Mas eu entrara no silêncio da Ketan. Estava concentrando toda a minha Veavin.    

Quando o ribombar de um trovão soou por entre as pesadas nuvens. Tempi e eu fomos em linha reta enquanto Ed e Alphonse se moveram em diagonais para a esquerda e para a direita. Acompanhando o mercenário eu alcancei Susph e comecei a desferir inúmeros golpes contra ela. Mas de uma maneira assombrosamente fácil ela se esquivava de nossas espadas. Chegava a rir-se. Era como se dançasse. Quando se cansou de brincar conosco ela me derrubou com uma bofetada mais forte que a de Carceret e com o que pareceu ser um gesto mágico direcionou um raio do céu contra Tempi. Vi meu amigo ser envolvido por um clarão e um segundo depois cair ao chão, com uma leve fumaça subindo de suas vestes.  

_TEMPI! _ exclamei. 

 Coloque-me de pé depressa. A probabilidade de Tempi ter sobrevivido era ínfima mas eu precisava tentar reanima-lo. Mas para conseguir fazer isso teria de derrubar Susph primeiro. 

Escutei o vento e ele me escutou:

            _EOLKEN! _ pronunciei.

Desferi um golpe que entrou em um vácuo. A velocidade da trajetória da lâmina foi triplicada pela ausência de atrito com o ar. Susph não conseguiu desviar. Sua cabeça caiu ao chão. Mais uma vez o vento me valera. 

A cabeça decepada de Susph se desfez em pó que foi carregado pela ventania. Eu já ia me dirigir até Tempi quando notei que o corpo de Susph permanecia ereto e sem pingar uma única gota de sangue do pescoço decapitado como seria de se esperar que acontecesse. Foi com abalo que vi centenas de retângulos se materializarem e se aglomerarem até formarem uma nova e perfeita cabeça para ela. 

Fator de cura. Eu já lera sobre aquela espantosa habilidade em livros de mitologia. Guerreiros que fizeram pactos com forças obscuras e se levantavam depois de mortos no campo de batalha e bruxas que fogueiras não conseguiam matar. Toda lenda tem um retalho de verdade. E agora eu estava paralisado dentro do absurdamente verdadeiro poder imortalizador da Pedra Filosofal. 

Com um olhar suspicaz então Susph declarou:

_Vejo uma áurea diferente em você menino de cabelos de fogo. Você sobreviveu a um encontro com Aquele que Não Dorme. Você foi e voltou de Fae. Você é chamado de muitas coisas mas afinal qual é o seu nome?

Ela parecia ter a capacidade de falar sobre o que eram segredos na vida da pessoa com quem travava conversa, tal o Chtaeh. Me mantive calado. Da última vez, na grande planície relvada, falar demais só havia me trazido tristeza. 

De repente um gigante cinza surgiu atrás de Susph. O punho de Alphonse cortou o ar num soco cheio de pressão. Porém os contrassensos não paravam de acontecer. Num célere movimento os fios do longo cabelo negro de Susph se agitaram e envolveram a mão de Alphonse, que sentiu seu braço travar-se. Ele sentou forçá-lo para frente mas os fios eram como correntes de uru. 

_Atacar por traição é um ato muito covarde. _ sibilou Susph.

O elmo de Alphonse então espirrou para cima e um vulto saiu do interior do pesado traje, voando por cima de Susph num salto mortal e caindo diante dela,

_Não seja por isso. _ disse Edward Elric.

 E num golpe rápido ele varou a inimiga do abdômen até as costas com seu braço biomecânico, agora transmutado em uma mistura de soqueira com clava toda coberta de cravos pontudos. Mas Susph não sangrou e nem mesmo gritou. Sua delicada mão agarrou o ombro do automail de Ed e com uma força sobre-humana começou a aperta-lo entre os dedos. Com um sorriso pérfido ela esmagou as placas, barras e rolamentos e quebrou os fios e cabos, destruindo assim a peça completamente e separando o corpo de Ed da prótese. 

 A chuva era inclemente. Eu estava sem ação. Como venceríamos um ser para o qual o aço e o papel eram a mesma coisa? 

Susph agarrou um Ed de olhos arregalados pelo pescoço e lhe vociferou enquanto o asfixiava: 

 _Como você, o maior dos pecadores, pode achar que tem algum poder contra mim? Escute: eu vislumbro o seu futuro. Você deixará este mundo sem conseguir devolver o corpo de seu irmão! E então ele ficará sozinho, com alma eternamente refém do metal! É assim que termina a sua familiazinha patética!

 Tentando com sua mão se desvencilhar do enforcamento Ed respondeu engasgando: 

             _Pois... eu... trasmutarei... esse destino! 

 Enfurecida, Susph então arremessou Ed contra Alphonse. O impacto das costas do Alquimista de Aço contra a armadura foi tamanho que ela se desmontou inteira. 

 De repente algo estranho ocorreu. Susph cambaleou e caiu de joelhos ao chão. Ela tentou desesperadamente arrancar o automail de Ed mas não obteve sucesso, gritou em fúria:  

             _Como ousa me tocar com ferro!?

 Ed levantou suas costas do chão com um cotovelo e com um sorriso prazenteiro respondeu:

 _Durante nossa viagem para cá encontramos um desses chamados latoeiros. Ele nos contou histórias sobre os Encantados. Falou muito sobre os efeitos que o ferro tem sobre eles. Não sou muito de acreditar em folclore mas também não sou um fundamentalista. Eu compreendi a transmutação que o Alquimista Sem Nome quis realizar. Tudo que precisei fazer foi transmutar as peças de aço do antebraço do meu automail em ferro puro. Também tive o cuidado de acrescentar cravos ao novo formato dele para dificultar a remoção. Você enfraquecerá antes de conseguir retirar minha prótese de dentro de você. 

 Susph, tremendo de raiva, fulminou Ed com um olhar assassino. Lentamente então ela se pôs de pé e ergueu os dois braços aos céus. O vendaval se intensificou mais e mais. Comecei a me sentir empurrar pelo vento que eu reparei que girava em volta de um centro. Susph estava criando um ciclone. A pressão do ar aumentou ainda mais e eu me senti sendo puxado do chão. Então senti um aperto na minha perna direita. Quando olhei para baixo vi Tempi agarrado a minha perna, preso ao chão unicamente por sua espada cravada transversalmente ao solo. Eu não tinha ideia de como ele estava vivo depois de ser atravessado por uma espada e ser fulminado por um raio. Ele tinha a solidez de uma montanha. 

Vi Ed e as peças de Alphonse passarem zunindo por nós e voarem para longe. A força do tornado já era avassaladora e pressenti que a espada Tempi não iria aguentar nos segurar por muito tempo.

            _TEMPI, VOCÊ TEM QUE ME SOLTAR! _ gritei.

           _ABANDONAR UM AMIGO NÃO É DA LETHANI! – bradou Tempi

 Sabem, há poucas coisas que podem nos fortalecer nas horas onde não há mais nenhuma esperança. Mas o laço da amizade verdadeira tem esse profundo poder. As palavras de Tempi me recordaram todas as outras pessoas que tinham um lugar em meu coração: Denna, Ben, Auri, Simmon, Wilem, Feila, Elodin, Marten, Dedan, Hespe, Vashet e até mesmo Devi. Também me lembrei de outro companheiro muito querido: o vento. Lembrei-me de como vi Ben chama-lo na noite em que nos conhecemos. Nossa tripla amizade começou ali. Lembrei-me de como o “persegui”, de quando o chamei pela primeira vez contra Ambrose, de como caminhei com ele diante da Árvore Espadeira e de outras vezes que ele ouvira a minha voz. Sempre vinha. Eu gostava de sua presença.

Parecia ser recíproco.

           O redemoinho então começou a perder velocidade até que cessou completamente.

Tempi e eu caímos no chão. Susph esbravejou:

            _Como pode ser possível? O vento não está respondendo a minha magia!

 Me firmei sobre minhas pernas com a diminuta parcela de força que me restava. Eu sabia o que acontecera. 

 _Susph, você usa o vento como um escravo e o reduz a um mero instrumento. Mas você não o conhece. Ele é livre por natureza. Ele não gosta de ser manipulado contra sua vontade. Ele não respeita quem o desrespeita. Mas agora ele encontrou alguém que o chama pelo nome e o respeita: eu. Por isso o vento não irá mais te obedecer e não irá me ferir: pois ele me respeita e a você não. 

 A expressão de Susph misturava espanto e furor. Com Cesura em riste arremeti contra ela. Mas então vi Denna a minha frente e estaquei. Estava usando seu vestido azulclaro de quando havíamos nos encontrado pela última vez. Encharcada pela chuva ela era de uma beleza ímpar. 

            _Onde você vai com esta espada meu menestrel? _ perguntou ela. 

Meu braço tremia. O sorriso dela era como ouro fino. Denna disse:

 _Largue isto e venha. Vamos tomar banho de rio novamente. Tenho um presente para você. 

             Eu quis dizer ir com ela mais do que qualquer outra coisa.

            _Gosto tanto de você. Sempre foi tão gentil comigo. _ falou ela. 

 Mas aquelas palavras a traíram. Nada me faria esquecer. Eu já fora rude com Denna. Já fora como todos os outros. Mas eu não era como eles. Não iria desistir dela tão fácil assim. Retomando minha razão voltei a enxergar Susph em sua aparência verdadeira. Indignado com o truque mágico sujo ao qual Susph tinha recorrido respondi:

 _Lembre-se de que há três coisas que todo homem sábio teme: o mar na tormenta, uma noite sem luar e a ira de um homem gentil.  

 Deitei fora toda a minha prudência. Os relâmpagos bailavam no céu. Joguei minha espada para cima o mais alto que pude. Retirei energia da minha temperatura corporal. Dividi minha mente em sete partes e murmurei com cada uma delas conexões simpáticas entre Cesura e o braço mecânico de Ed alojado no tronco de Susph. O pouco calor que havia em minhas entranhas fugia. Tudo ficou iluminado. Ouvi dois estrondos seguidos: uma explosão e um trovão. Então perdi a consciência. 

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