_Temos terrível problema agora. _ disse
alguém.
Quando me dei
conta Tempi estava agachado junto a mim, apoiando-se em sua espada. Ele
improvisara com algumas tiras de couro de seu traje uma apertada amarra para
conter o sangramento de seu severo ferimento no ombro. Ele respirava com
dificuldade, tinha a testa úmida de suor e estava pálido. Ali perto, no lugar
onde ele tombara pude ver uma farta poça de sangue. Somente o fato de ele estar
se conservando consciente era incrível.
_Duvidei que você estivesse vivo. _ falei.
_Me movi no
último instante para não ser atingido em pontos vitais. É preciso mais do que
uma estocada para acabar com um ademriano. _ Tempi sacudiu o punho fechado com
vigor.
Alphonse então
se uniu a nós. Ao seu lado estava Ed, sem o inchaço anterior mas ainda com a
face severamente machucada.
_Eu usei um
medicamento cedido a nós pelo Fisiopata-Mor da Universidade. Foi muito efetivo.
_ disse a armadura _ Pena que perdi a bota e parte da calça do Ed na
transmutação que fiz para soltá-lo.
O tecido da perna esquerda da calça de Ed
havia desaparecido do joelho para baixo deixando à mostra o membro mecânico
descalço. O Alquimista de Aço disse:
_Está tudo bem
Al. O importante é que você está inteiro. Mas afinal, o que foi que aconteceu
com você e as quimeras lá fora?
_Nem queira
saber. Lutei como em um Torneio do Inferno! Francamente... se estivesse com meu
corpo de verdade não tenho certeza de que estaria conversando com vocês agora.
De súbito
nuvens bloquearam a luz estelar que adentrava pelo grande buraco no teto do
templo tehliniano. Um trovão ribombou ao longe e um vendaval entrou pela porta
da igreja.
_Como ousam
ignorar minha terrível presença humanos fétidos? _ questionou Susph levitando,
nua e fatal.
Era ela.
Estava de alguma forma alterando o clima. Não ouvi nada diferente. Não se
tratava de Nomeação. Era Magia
Elemental. Coisa que eu ouvira ao redor das fogueiras dos Ruh e segundo só os
deuses eram capazes de realizar.
_Tempi, como se mata um deus? _
perguntei.
_Deus?! Me
recuso a acreditar em de tal coisa como cientista! _ afirmou Ed cruzando os
braços, querendo demonstrar superioridade.
_Deixe disso
mano. _ interveio Alphonse _ Como você pode dizer isto depois do Portão?
_Calem-se
todos. _ disse Tempi _ Não sei como matar um deus. E mesmo que soubesse não
contaria. Matar deuses não é da Lethani. Mas eu percebo. Susph não é deusa.
Deuses não tem corpo falso vindo de arte profana. Tampouco é um rhinta. É menos
que uma mulher mas é mais que um demônio. Coisa pior. Talvez até pior que Os Sete Traidores.
O vento e os
trovões eram cada vez mais fortes. Com muito custo e ainda me sentindo péssimo
consegui me pôr de pé. Meus olhos se detiveram em Susph. De imediato senti-me
completamente dominado pela beleza dela, de uma maneira parecida como fui ao
ver Feluriana pela primeira vez. Sua tez morena era como cobre polido, seus
seios eram dois melões graúdos e seus lábios, uma proposta irrecusável. Mas
toda e qualquer atração era quebrada abruptamente ao se cruzar um olhar com
ela. Nas duas grandes ametistas que eram os olhos de Susph havia uma
singularidade intimidadora, que claramente não era deste mundo e nem de
Fae.
Havíamos
fracassado em nossa missão. Fomos surrados de modo humilhante, deixamos treze
vidas inocentes se perderem e agora um poder descomunal e maléfico fora
liberto. Tudo estava perdido.
A igreja toda
começou a tremer violentamente. Susph estava provocando um terremoto.
_Temos que sair daqui! _ gritou Alphonse.
_Deixem isso
comigo. _ falou Ed e transmutou um longo túnel de pedra que dava para os fundos
do prédio _ Vamos!
Enquanto
corríamos desesperadamente ouvíamos pedaços do telhado se chocarem com o
exterior rochoso da passagem. Bastou que ganhássemos o ar livre para que a
igreja toda ruísse com um estrondo esmagador as nossas costas, levantando uma
espessa nuvem de pó. Tomamos um pouco mais de distância e ficamos a observar a
poeira baixar.
Eu ia descer
ao Coração de Pedra para tentar ter uma mínima ideia mas colocando a mão sobre
meu ombro Tempi disse:
_Não pensar.
Cabeça é inútil. Coração é inútil. Nossa melhor arma agora é a Lethani. Deixe o
conhecimento que é mais profundo te guiar.
Tempi tinha
razão. Só a sabedoria da Lethani poderia nos indicar um caminho de ação
agora.
Concordância
respeitosa. _ respondi em adêmico.
Começou a chover. Os trovões faziam coro.
Ed aludiu:
_Em Amestris
houve um certo alquimista que inventou uma máquina que criava tempestades. Ela
era movida por uma pedra filosofal falsa. Causou muitos estragos o fulano. Teve
o erro de querer confrontar o Exército. Coitado... Mustang acabou com ele com
máquina e tudo. Mas isso aqui está em outro patamar. É algo com o qual nem
mesmo o Alquimista das Chamas poderia lidar sozinho.
Entrei no estado
mental chamado Folha em Rodopio, uma
prática fundamental da Ketan. Esvaziei-me de pensamentos até ter a psique limpa
e clara. Pelo que eu entendia de Psicologia esta técnica de meditação atuava
através do Inconsciente, uma
instância mais funda da mente onde tudo o que forma quem somos (lembranças,
afetos, pulsões) permanece enterrado sob um “lodo”. O Inconsciente trabalha de
uma forma que procura proteger a mente de experiências consideradas negativas,
buscando sempre evitar o desprazer e atingir o prazer. A maioria dos
comportamentos humanos tem raiz inconsciente e nisso surge o questionamento de
até que ponto somos verdadeiramente os autores de nossas próprias
escolhas.
Mas os
ademrianos são ensinados desde a infância a ter autocontrole e a Lethani, sua
filosofia, é totalmente avessa a dinâmica do Inconsciente. Nela não se busca
atingir o prazer ou evitar o desprazer. Se busca tomar a decisão certa. Não se
age baseado no passado ou no futuro. Se age centrado no presente. Nela a dor
não é distorcida afim de não ser plenamente sentida. Ela é experimentada em
todas as suas dimensões, sendo objeto de contínua reflexão que conduz a um
autêntico amadurecimento. Isto era Lethani. Era dessa postura de espírito que
provinha a real força dos ademrianos. E eu era do Ademre.
As gotas
fizeram a poeira do desabamento da igreja assentar mais depressa. Susph veio
voando e pousou no chão a uns cinquenta metros de nós. Completamente molhada
ela era ainda mais arrebatadora aos olhos. Com o sabor de uma bebida envenenada
ela cantarolou:
Faço chuva de água
Faço chuva de vento
Quanto até chover sangue
Quanto até chover sangue
Terá você ainda por tempo?
Sim. Com a certeza. Ela era uma coisa como o
Chtaeh: má e velha como a Terra. Se ela conseguisse pagar sua dívida e
libertá-lo da árvore onde ele era mantido o mundo estaria em maus lençóis.
_Nós
dois. _ Tempi apontou para mim e para si _ Atacar pela frente.
_Certo.
_ Concordei.
_Al, vamos rodear e atacar por trás. _ comandou Ed tirando seu sobretudo
e só permanecendo com uma camiseta preta sem mangas _ “Manobra Homero”
Combinado?
_Combinado
mano!
Se
aquela fosse uma situação comum minha curiosidade incurável certamente me
levaria a perguntar o que era a “Manobra Homero”. Mas eu entrara no silêncio da
Ketan. Estava concentrando toda a minha Veavin.
Quando o
ribombar de um trovão soou por entre as pesadas nuvens. Tempi e eu fomos em
linha reta enquanto Ed e Alphonse se moveram em diagonais para a esquerda e
para a direita. Acompanhando o mercenário eu alcancei Susph e comecei a
desferir inúmeros golpes contra ela. Mas de uma maneira assombrosamente fácil
ela se esquivava de nossas espadas. Chegava a rir-se. Era como se dançasse.
Quando se cansou de brincar conosco ela me derrubou com uma bofetada mais forte
que a de Carceret e com o que pareceu ser um gesto mágico direcionou um raio do
céu contra Tempi. Vi meu amigo ser envolvido por um clarão e um segundo depois
cair ao chão, com uma leve fumaça subindo de suas vestes.
_TEMPI! _ exclamei.
Coloque-me de pé depressa. A probabilidade de
Tempi ter sobrevivido era ínfima mas eu precisava tentar reanima-lo. Mas para
conseguir fazer isso teria de derrubar Susph primeiro.
Escutei o vento e ele me escutou:
_EOLKEN! _ pronunciei.
Desferi um
golpe que entrou em um vácuo. A velocidade da trajetória da lâmina foi
triplicada pela ausência de atrito com o ar. Susph não conseguiu desviar. Sua
cabeça caiu ao chão. Mais uma vez o vento me valera.
A cabeça
decepada de Susph se desfez em pó que foi carregado pela ventania. Eu já ia me
dirigir até Tempi quando notei que o corpo de Susph permanecia ereto e sem
pingar uma única gota de sangue do pescoço decapitado como seria de se esperar
que acontecesse. Foi com abalo que vi centenas de retângulos se materializarem
e se aglomerarem até formarem uma nova e perfeita cabeça para ela.
Fator de cura.
Eu já lera sobre aquela espantosa habilidade em livros de mitologia. Guerreiros
que fizeram pactos com forças obscuras e se levantavam depois de mortos no
campo de batalha e bruxas que fogueiras não conseguiam matar. Toda lenda tem um
retalho de verdade. E agora eu estava paralisado dentro do absurdamente
verdadeiro poder imortalizador da Pedra Filosofal.
Com um olhar suspicaz então Susph
declarou:
_Vejo uma
áurea diferente em você menino de cabelos de fogo. Você sobreviveu a um
encontro com Aquele que Não Dorme. Você foi e voltou de Fae. Você é chamado de
muitas coisas mas afinal qual é o seu nome?
Ela parecia
ter a capacidade de falar sobre o que eram segredos na vida da pessoa com quem
travava conversa, tal o Chtaeh. Me mantive calado. Da última vez, na grande
planície relvada, falar demais só havia me trazido tristeza.
De repente um
gigante cinza surgiu atrás de Susph. O punho de Alphonse cortou o ar num soco
cheio de pressão. Porém os contrassensos não paravam de acontecer. Num célere
movimento os fios do longo cabelo negro de Susph se agitaram e envolveram a mão
de Alphonse, que sentiu seu braço travar-se. Ele sentou forçá-lo para frente
mas os fios eram como correntes de uru.
_Atacar por traição é um ato muito
covarde. _ sibilou Susph.
O elmo de
Alphonse então espirrou para cima e um vulto saiu do interior do pesado traje,
voando por cima de Susph num salto mortal e caindo diante dela,
_Não seja por isso. _ disse Edward Elric.
E num golpe rápido ele varou a inimiga do
abdômen até as costas com seu braço biomecânico, agora transmutado em uma
mistura de soqueira com clava toda coberta de cravos pontudos. Mas Susph não
sangrou e nem mesmo gritou. Sua delicada mão agarrou o ombro do automail de Ed
e com uma força sobre-humana começou a aperta-lo entre os dedos. Com um sorriso
pérfido ela esmagou as placas, barras e rolamentos e quebrou os fios e cabos,
destruindo assim a peça completamente e separando o corpo de Ed da prótese.
A chuva era inclemente. Eu estava sem ação.
Como venceríamos um ser para o qual o aço e o papel eram a mesma coisa?
Susph agarrou
um Ed de olhos arregalados pelo pescoço e lhe vociferou enquanto o
asfixiava:
_Como você, o maior dos pecadores, pode achar
que tem algum poder contra mim? Escute: eu vislumbro o seu futuro. Você deixará
este mundo sem conseguir devolver o corpo de seu irmão! E então ele ficará
sozinho, com alma eternamente refém do metal! É assim que termina a sua
familiazinha patética!
Tentando com sua mão se desvencilhar do
enforcamento Ed respondeu engasgando:
_Pois...
eu... trasmutarei... esse destino!
Enfurecida, Susph então arremessou Ed contra
Alphonse. O impacto das costas do Alquimista de Aço contra a armadura foi
tamanho que ela se desmontou inteira.
De repente algo estranho ocorreu. Susph
cambaleou e caiu de joelhos ao chão. Ela tentou desesperadamente arrancar o
automail de Ed mas não obteve sucesso, gritou em fúria:
_Como
ousa me tocar com ferro!?
Ed levantou suas costas do chão com um
cotovelo e com um sorriso prazenteiro respondeu:
_Durante nossa viagem para cá encontramos um
desses chamados latoeiros. Ele nos contou histórias sobre os Encantados. Falou
muito sobre os efeitos que o ferro tem sobre eles. Não sou muito de acreditar
em folclore mas também não sou um fundamentalista. Eu compreendi a transmutação
que o Alquimista Sem Nome quis realizar. Tudo que precisei fazer foi transmutar
as peças de aço do antebraço do meu automail em ferro puro. Também tive o cuidado
de acrescentar cravos ao novo formato dele para dificultar a remoção. Você
enfraquecerá antes de conseguir retirar minha prótese de dentro de você.
Susph, tremendo de raiva, fulminou Ed com um
olhar assassino. Lentamente então ela se pôs de pé e ergueu os dois braços aos
céus. O vendaval se intensificou mais e mais. Comecei a me sentir empurrar pelo
vento que eu reparei que girava em volta de um centro. Susph estava criando um
ciclone. A pressão do ar aumentou ainda mais e eu me senti sendo puxado do chão.
Então senti um aperto na minha perna direita. Quando olhei para baixo vi Tempi
agarrado a minha perna, preso ao chão unicamente por sua espada cravada
transversalmente ao solo. Eu não tinha ideia de como ele estava vivo depois de
ser atravessado por uma espada e ser fulminado por um raio. Ele tinha a solidez
de uma montanha.
Vi Ed e as
peças de Alphonse passarem zunindo por nós e voarem para longe. A força do
tornado já era avassaladora e pressenti que a espada Tempi não iria aguentar
nos segurar por muito tempo.
_TEMPI,
VOCÊ TEM QUE ME SOLTAR! _ gritei.
_ABANDONAR
UM AMIGO NÃO É DA LETHANI! – bradou Tempi
Sabem, há poucas coisas que podem nos
fortalecer nas horas onde não há mais nenhuma esperança. Mas o laço da amizade
verdadeira tem esse profundo poder. As palavras de Tempi me recordaram todas as
outras pessoas que tinham um lugar em meu coração: Denna, Ben, Auri, Simmon,
Wilem, Feila, Elodin, Marten, Dedan, Hespe, Vashet e até mesmo Devi. Também me
lembrei de outro companheiro muito querido: o vento. Lembrei-me de como vi Ben
chama-lo na noite em que nos conhecemos. Nossa tripla amizade começou ali.
Lembrei-me de como o “persegui”, de quando o chamei pela primeira vez contra
Ambrose, de como caminhei com ele diante da Árvore Espadeira e de outras vezes
que ele ouvira a minha voz. Sempre vinha. Eu gostava de sua presença.
Parecia ser recíproco.
O
redemoinho então começou a perder velocidade até que cessou completamente.
Tempi e eu caímos no chão. Susph
esbravejou:
_Como
pode ser possível? O vento não está respondendo a minha magia!
Me firmei sobre minhas pernas com a diminuta
parcela de força que me restava. Eu sabia o que acontecera.
_Susph, você usa o vento como um escravo e o
reduz a um mero instrumento. Mas você não o conhece. Ele é livre por natureza.
Ele não gosta de ser manipulado contra sua vontade. Ele não respeita quem o
desrespeita. Mas agora ele encontrou alguém que o chama pelo nome e o respeita:
eu. Por isso o vento não irá mais te obedecer e não irá me ferir: pois ele me
respeita e a você não.
A expressão de Susph misturava espanto e
furor. Com Cesura em riste arremeti contra ela. Mas então vi Denna a minha
frente e estaquei. Estava usando seu vestido azulclaro de quando havíamos nos
encontrado pela última vez. Encharcada pela chuva ela era de uma beleza
ímpar.
_Onde
você vai com esta espada meu menestrel? _ perguntou ela.
Meu braço tremia. O sorriso dela era como
ouro fino. Denna disse:
_Largue isto e venha. Vamos tomar banho de rio
novamente. Tenho um presente para você.
Eu
quis dizer ir com ela mais do que qualquer outra coisa.
_Gosto
tanto de você. Sempre foi tão gentil comigo. _ falou ela.
Mas aquelas palavras a traíram. Nada me faria
esquecer. Eu já fora rude com Denna. Já fora como todos os outros. Mas eu não
era como eles. Não iria desistir dela tão fácil assim. Retomando minha razão
voltei a enxergar Susph em sua aparência verdadeira. Indignado com o truque
mágico sujo ao qual Susph tinha recorrido respondi:
_Lembre-se de que há três coisas que todo
homem sábio teme: o mar na tormenta, uma noite sem luar e a ira de um homem
gentil.
Deitei fora toda a minha prudência. Os
relâmpagos bailavam no céu. Joguei minha espada para cima o mais alto que pude.
Retirei energia da minha temperatura corporal. Dividi minha mente em sete
partes e murmurei com cada uma delas conexões simpáticas entre Cesura e o braço
mecânico de Ed alojado no tronco de Susph. O pouco calor que havia em minhas
entranhas fugia. Tudo ficou iluminado. Ouvi dois estrondos seguidos: uma
explosão e um trovão. Então perdi a consciência.
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