Edward Elric
pareceu não digerir bem o que nosso rival dissera sobre sua experiência no
mundo dos não-humanos. Também pudera. São pouquíssimas as pessoas que conhecem
a magia real. No Eld Tempi já havia contemplado Feluriana de longe em nossa
expedição a serviço de Alveron. Ele já entrara em contato com o sobrenatural.
Enquanto isso Ed demonstrava ter uma razão muito calcada no empirismo. Eu era
um curioso irremediável e talvez seja por isso que vi mais coisas na minha
juventude do que a maioria das pessoas jamais sonhará ver. Não o culpei.
_Sabem
porque não possuo mais face? _ indagou o alquimista hediondo.
_Porque ela era feia demais e uma fada a
removeu, fazendo um favor a humanidade? _ sugeriu Ed com sarcasmo.
SALIENDAMA!
_ gritou o Alquimista Sem Nome. Uma esfera de minério de aproximadamente
trinta centímetros de diâmetro se desprendeu do piso de pedra da igreja e
flutuou diante dele. Nomeação. Com um sussurro ressonante ele fez a bola de
pedra cruzar o salão a acertar Edward. Ele teria sido atingido em cheio mas
bloqueou o impacto com seu automail. Mesmo assim foi parar a vinte metros atrás
de nós. A esfera flutuou entre mim e Tempi por alguns instantes e depois se
desfez, tornando-se um monte de areia escura no chão. Eu só vira Elodin nomear
com semelhante poder!
O
Sem Nome falou:
_Observem o controle que se tem sobre uma
coisa quando se conhece o nome dela intimamente. Pode-se moldar tanto o que é material quanto o que é imaterial. Foi um
poder assim que me permitiu fazer o que jamais se fez: tornar-me completamente
inominável. Eu retirei meu nome profundo de dentro de mim e o destruí, para que
ninguém jamais pudesse vir a encontra-lo e usá-lo contra mim. Desse modo também
driblei o risco maior da transmutação humana: a troca não equivalente. Quando o
valor dos elementos trocados não é correspondente O Portão costuma tragar o
que estiver mais próximo para balancear a transação. Agora estou a imune a este
fator. Não possuir um nome me permite abandonar a condição de ser vivente e adotar a de entidade ambígua, me livrando assim da
cobrança universal. Um dos efeitos colaterais de assumir essa natureza é o
desaparecimento do rosto. Mas afinal é um preço justo. Assim estou protegido de
sofrer a mesma sorte que você e seu irmão Alquimista de Aço. Posso ouvir sua dor gritar lá dentro. Você se
culpa profundamente pelo que aconteceu.
_CALE A BOCA!
_ gritou Ed já de pé _ O que você acha que sabe sobre o que houve? NADA! Você e
a sua feitiçaria de merda não fazem a mínima ideia do que Al e eu passamos, de
tudo que tivemos de superar! Não sabe nem que conhecemos muito bem o grupo
secreto que roubou sua Pedra Filosofal em Amestris. Há mais que dois deles. Não
pode sonhar como são perigosos. Só por descuido deles você está vivo. Mas meu
irmão e eu já sobrevivemos a eles várias vezes. É por isso que esta noite você
perderá. Perto deles você é um novato.
O Alquimista Sem Nome riu com desdém e
voltou a agitar sua sineta de runas.
_Você morderá a sua língua logo mais
garoto.
Então algo
caiu com estrondo ao lado dele. Uma grande quimera. Esta porém tinha uma forma
mais humanoide do que a que Alphonse Elric estava enfrentando do lado de fora
da igreja. Tinha um corpo de um homem, ridiculamente musculoso e com veias
saltando-lhe. Da cintura para cima estava nu e usava somente uma calça preta e
gasta. Nas mãos tinha garras ao invés de unhas e sua cabeça era de leopardo.
Nos seus braços ele segurava algo. Fiquei estarrecido ao constatar que era o
menino órfão que me entregara o bilhete de Devi mais cedo naquela noite. Estava
com manchas amareladas na roupa e desacordado. O Alquimista Sem Nome possuía
duas quimeras! Não esperávamos por aquilo.
_Finalmente
você chegou! Tive de usar o convocador. Porque tanta demora? _ ralhou o mestre
com a criatura.
A quimera respondeu com um rugido.
_Um homem de metal?
Um leve rosnado.
_Te atrapalhou
na volta? E você teve de lidar com ele?
Outro rugido.
_Compreendo _ falou O Sem Nome.
_Oh não! Al! _ exclamou Ed com expressão
grave.
Eu não sabia
com o que ficava mais preocupado. Com Alphonse ou com o garoto que a quimera
havia trazido. O monstro felino caminhou até círculo menor e vazio do grande
círculo maior, deitou a criança ali e voltou para o lado de seu mestre. Agora
nosso inimigo tinha tudo o que precisava nas mãos. Meu instinto falou por mim:
_Ed, teremos
que acreditar no Alphonse e nos focar na situação que temos aqui. Se não
atacarmos exatamente agora ele criará a Pedra a partir dessas treze vidas!
Temos que impedir!
Sem utilizar
círculo de transmutação algum Ed criou uma lâmina sobre as costas de sua mão
mecânica.
_De acordo. O meu irmão é duro na queda.
Temos que ser também. _ disse ele.
_Certo. Você e
eu vamos atacamos O Sem Nome juntos. Tempi, você pega o homem-gato. De
acordo?
_Sim. _ disse
Tempi desembainhando a ameaçadora espada. Era a primeira vez que eu ouvia a voz
de Tempi desde que nos reencontráramos. Havia firmeza nela.
O Sem Nome
bateu as mãos e ia tocar no círculo de transmutação quando chamei o vento
contra ele, derrubando-o. Puxei Cesura da cintura e avancei contra ele ao lado
de Ed, rodeando o agourento círculo. Um borrão vermelho passou do outro lado e
no instante seguinte Tempi e a quimera leopardo se atracaram. O aço retinia
contra a queratina das garras que eram como facas. O Alquimista Sem Nome se pôs
de pé num salto e chamou do chão um grande paralelepípedo flutuante sobre o
qual subiu e fez ir em nossa direção. Ele transmutou seu convocador em um sabre
e o brandiu. Sem rosto, armado e voando em um enorme pedaço de pedra ele era
surrealmente ameaçador.
Nós freamos. Ed falou:
_Sabe Kvothe... eu posso não saber necas de
nomeação mas sei manipular mineral razoavelmente bem.
Ele bateu as mãos com estalo. Então tocou no
chão e seu corpo todo foi envolvido por estática. Um grosso punho de rocha
emergiu do chão por baixo do Sem Nome destruindo em pleno ar o bloco que
servia-lhe como veículo. Ele voou pelos ares e caiu de maneira acrobática perto
de nós que pronto começamos a investir contra ele usando nossas lâminas. Ed
improvisava o braço como espada desferindo golpes ferozes enquanto eu utilizava
minhas técnicas da Ketan,
lembrando-me de tudo o que aprendera com os ademrianos. Mas nosso adversário
era um exímio espadachim. Com uma habilidade inacreditável ele passava seu
sabre de uma mão para outra e se defendia quase ao mesmo tempo em que atacava.
Seus braços se movimentavam a uma velocidade impressionante. O pior veio quando
ele adicionou golpes de luta corporal ao seu estilo de combate. Ed rolou após
receber um fortíssimo chute no estômago enquanto caí depois de levar três pesados
socos na cabeça. O Sem Nome ergueu sua lâmina para me cortar ao meio quando um
retângulo de pedra se levantou entre nós bloqueando seu golpe.
Vi Ed de
cócoras com as mãos no solo a alguns metros. Não havia tempo para
agradecimentos. Corri para longe da parede no exato momento em que ela se
tranformou em um arco decorado com afrescos góticos. O alquimista rhinta passou
por baixo dele e pareceu nos mirar. Mesmo que ele não possuísse expressão pude
sentir em seu olhar uma malignidade que se equipava a de Gris, o executor de
meus pais. Reconhecer essa perversa semelhança acendeu brasas vivas em mim. Eu
não podia morrer ali. Tinha que viver. Viver para caçar o Chandriano. Viver
para encontrá-los. Viver para exterminá-los da face da terra e assim vingar
minha trupe. Tinha de viver para isso!
Um mergulho rápido no Coração de Pedra me deu
uma ideia. Passei um pouco do sangue quente que escorria da minha cabeça na
lâmina de Cesura. A mão direita do Sem Nome estava suja de vermelho após ter me
esmurrado. Eu sabia do risco daquilo mas não havia saída. Murmurei uma conexão
simpática. O sangue serviu como ponto de semelhança e fonte de energia.
Imobilizei-o. Senti sua resistência, pesada como chumbo. Ele começou a mexer-se
lentamente e com esforço eu dividi minhas mentes em sete partes, meu limite
máximo. Consegui travá-lo. O calor já abandonara quase completamente meu corpo
e eu suava frio em bicas. Mas o Alar dele era como uma avalanche. Ed de alguma
maneira conseguiu perceber o que eu fazia e disparou em direção ao inimigo. Eu
segurei a conexão com tudo o que tinha. Mas o Sem nome foi mais forte. Com um
grito ele quebrou a simpatia e se libertou do meu controle. Caí de costas,
gelado, coberto de suor e com o corpo repleto de dores. Retirar do calor do
sangue energia para a simpatia é uma absoluta loucura. Nunca dei mais razão a
Elxa Dal do que naquela hora.
Caído e sem conseguir me levantar só pude
assistir o que aconteceu a seguir. Com um som o nomeador da pedra fez com que a
perna esquerda de Ed afundasse no chão e ficasse presa, como se por um segundo
o piso tivesse se tornado barro. O Alquimista de Aço estava preso. O Sem Nome
impeliu contra ele. Ed bloqueou o golpe do sabre mas o choque quebrou a lâmina
de sua prótese tecnológica. O homem sem rosto então largou sua arma no chão e
passou a desferir socos e mais socos nele. A maioria deles foi direto na cara.
A sensação de impotência arrancou-me lágrimas.
_EEEEED! _ lembro-me de haver berrado.
Com a perna
fincada ao chão Ed não tinha esquiva e foi cruelmente castigado pelos punhos do
agressor até ficar desfigurado como um pugilista após uma luta até o último
minuto. Por fim desmaiou, inconsciente.
O perverso alquimista apanhou seu sabre e avançou em minha direção.
Quase tendo uma hipotermia eu era só tremores involuntários e desespero. Sem
piedade O Sem Nome pisou em meu peito e apoiou o peso de seu corpo sobre mim.
Meus pulmões eram esmagados e perdido em agonia eu sufocava. Quando o sabre ia
atravessar meu coração algo grande atingiu o homem sem face e tirou-o de sobre
mim. Quando olhei melhor vi que se tratava do corpo da quimera-leopardo. Estava
todo lacerado e tinha sido decapitado. A uma curta distância Tempi segurava a
cabeça felina, com a bocarra cheia de presas encancerada, ainda pingando sangue
do pescoço. O mercenário tinha alguns cortes no traje rubro mas parecia não
estar ferido gravemente. Se desfazendo de seu “troféu” e apontando a ponta da
espada para O Sem Nome ele disse:
_Você faz do homem e da fera arma viva para
usar. Macula sagrado estado dos elementos. Ataca inimigos sem defesa. É covarde
e tem medo de luta de verdade.
Aquilo pareceu mexer com o orgulho do Sem
Nome. Eu senti a terra tremer muito levemente.
_Covarde?! Saiba que não me faltou coragem
durante as duas vezes em que cruzei sua terra natal. Nas duas ocasiões enterrei
vivos guardiões que quiseram obstruir minha passagem.
Vi o rosto de Tempi se crispar pela primeira
vez desde que o conhecera. _Permitir sua
vida não é da Lethani. _ e investiu contra o assassino de seus compatriotas.
Os
dois espadachins iniciaram um insano duelo.
Conseguindo me
mover debilmente me envolvi em minha capa de sombras. Qualquer grau a mais me
ajudaria no estado em que me encontrava. Então comecei a sentir um toque
cálido, como o de um outro corpo junto ao meu. Feluriana. Seu encantamento agia
na shaed. E eu achara que ela usara de metáfora quando disse que a capa me
lembraria seus braços de fada. Feliz erro. Comecei a sentir novamente algumas
partes do meu corpo.
Mas não houve
tempo para ânimo. Ouvi Tempi gritar de dor e quando voltei meus olhos ele tinha
o ombro direito atravessado pelo sabre do Alquimista Sem Nome. Suas mãos
contorceram-se num espasmo e sua espada retiniu ao cair no chão. Minha garganta
secou. Com violência o impiedoso Re’lar renegado retirou sua lâmina de dentro
da carne de Tempi, arrancando sangue e outro grito medonho dele, que em seguida
tombou desfalecido.
Friamente o
Alquimista limpou sua arma na manga de seu casaco cinza. Ele então rumou para o
grande círculo de transmutação humana, onde as treze pessoas sequestradas
recentemente jaziam em um entorpecimento total. Quando estava na borda dele e
sabendo que eu o observava pelas costas, mudo de aflição, falou:
_Eu sei muito
bem pequeno músico. Sinto em você. Você também falou com ele. Com o Chtaeh. Mas
você não suportou ouvir as verdades que ele diz. Fugiu como um cão assustado.
Mas eu permaneci e fui recompensado. Ele iluminou meus erros. Pude entender que
o corpo de um Homúnculo jamais comportaria a alma de Bertel chamada do além da
morte. Seria novamente uma ressureição imperfeita. Porém orientado pela
sabedoria dele pude saber o rumo certo a tomar: criar um corpo da raça
encantada para comportar a essência de minha adorada. Foi uma tarefa quase
impossível reunir as quantidades necessárias dos elementos que constituem a
biologia daqueles seres. Mas eu consegui.
Minha cabeça girava com aquelas
declarações absurdas. Gritei:
_Você é insano!
Dar ouvidos ao Chtaeh é uma loucura sem limites!
_Todos os
grandes gênios um dia foram julgados fora de seus perfeitos juízos. É o preço
da grandiosidade.
Tentei me
levantar mas ainda não conseguia. Eu não tinha certeza se Ed ou Tempi ainda
estavam vivos.
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