Meia hora
depois cheguei na conhecida viela de odor desagradável atrás do açougue. Subi
as escadas e bati na porta da mulher que tantas vezes me fizera empréstimos. A
porta se entreabriu, ainda presa por várias travas. Devi me olhou de esguelha.
_Ah...
é você. Entre.
Ela soltou as trancas e me deu passagem.
Trajava somente uma camisola laranja e estava descalça. Seu cabelo loiro
avermelhado estava amarrado em um pequeno coque, atravessado por um palito de
madeira. Ela estava simples, mas linda.
Quando entrei em seu escritório me deparei com
uma grande armadura montada no meio do aposento.
_Uau! _ exclamei _ Agora além de livros raros
você também está adquirindo artefatos antigos? Que peça fantástica!
_Eu
agradeço pelo elogio. _ disse uma voz fina, vinda do interior do
equipamento.
Surpreendi-me.
Não esperava por aquilo. O homem dentro da armadura devia ser enorme, apesar da
voz.
_Ora...
me desculpe eu não sabia que...
Devi,
que já havia fechado a porta, riu com vontade atrás de mim.
_Pelos
dedos de Tehlu, que situação mais absurda! _ zombou.
Ela rodeou o aposento e foi sentar-se atrás de
sua mesa. Um pequeno círculo chamuscado se desenhava no meio do móvel,
lembrança de um interrogatório difícil entre nós. Só então eu notei que havia
alguém sentado diante dela, na cadeira que muitas vezes eu ocupara. Era um
jovem baixo, de cabelos dourados, presos num rabo de cavalo. Trajava um
sobretudo vermelho e calças e botas muito escuras. De costas não podia ver seu
rosto. Havia uma segunda cadeira ao seu lado.
_Sente-se.
_ disse Devi
Obedeci. O rapaz ao meu lado tinha olhos
castanhos e o rosto emoldurado por franjas carregado de uma expressão séria. O
sujeito de armadura cruzou os braços atrás de nós, fazendo um ruído
metálico.
_Kvothe, O
Sem-Sangue, quero que conheça Edward,
O Alquimista de Aço. _ apresentou
Devi.
“Alquimista de Aço” ?! Que raio de nome era
aquele? Parecia saído de uma das histórias que eu ouvira em minha infância,
como as do Grande Taborlin! Quem era aquele garoto, parecendo mais novo do que
eu, para ter um título como aquele? Estendi a mão.
_Prazer. Kvothe, filho de Arliden.
Ele apertou minha mão.
_Edward Elric.
Me chame de Ed se for mais fácil. O prazer é todo meu. Este é Alphonse, meu
irmão. _ disse indicando com a cabeça o de armadura.
_Olá. _ cumprimentou Alphonse.
Só então notei
uma coisa. A mão de Edward era anormalmente fria e sua textura era estranha.
Quando a olhei melhor tomei um susto: ela era feita de puro metal!
Quando recolhemos os braços não pude
resistir e perguntei:
_O que há com sua mão?
Ele sorriu,
parecendo um pouco desconfortável, puxando a manga do sobretudo e revelando que
todo o seu braço direito não era de carne e osso mas um grande aparelho de
formas anatômicas.
_Isto... _ explicou Ed _ é um automail. É
uma prótese mecânica de alta tecnologia.
Também tenho um na minha perna
esquerda.
_Nunca vi um trabalho de siglística igual.
_ observei.
_Siglística?! O que é isto?
_Parem, parem,
parem... _ interrompeu Devi _ Se vocês dois começarem a conversar sobre
ciências vai amanhecer e não teremos resolvido nada.
Fez-se silêncio.
_ Fale Ed. _ pediu a usurária.
Edward se empertigou na cadeira e começou
a falar:
_Bem... somos
de Amestris, um país ao leste, a milhares de milhas além da cadeia de montanhas
que vocês chamam de Montes Tempestuosos. Somos Alquimistas do Estado. Meu
superior, Roy Mustang, nos enviou para cá atendendo a um pedido do Reitor da
Universidade Arcanum a fim de que nós investigássemos uma série de sequestros
aparentemente relacionados a alquimia que vem ocorrendo nesta cidade. Viajamos
com um lutador que contratamos como guia e guarda-costas. A propósito... onde
ele está?
_Está
praticando uma coreografia esquisita no cômodo ao lado. _ observou Devi _Já faz
um bom tempo.
Então
ouviram-se passos. Tempi entrou no escritório. Ele estava nu da cintura para
cima, usando suas calças muito vermelhas, presas por grossas tiras de couro.
Estava sem botas. Sua blusa, no mesmo estilo, ia pendurada em seu ombro. O suor
fazia seus músculos peitorais e abdominais luzirem. O cabelo cor de areia
grudava-se em sua testa. Sua face exibia serenidade.
Eu pensei em me
levantar para ir apertar-lhe a mão mas imediatamente me lembrei dos costumes
ademrianos. Controlei minhas expressões e com as mãos fiz sinais na língua
silenciosa.
Surpresa
agradável. Amigo querido. Profunda saudade. Grande alegria.
Tempi respondeu, também na linguagem de
sinais:
Amizade
recíproca. Nostalgia. Reencontro do destino. Grande alegria partilhada.
Os dizeres sem palavras prosseguiram:
Você
praticava a Ketan?
Sim.
E
interromper a Ketan não é aquilo que não é da Lethani?
Não quando aquele que o salvou do exílio, provando ser digno da
Lethani, faz-se presente e necessita ser cumprimentado como irmão do Ademre.
Era mesmo muito bom rever Tempi.
_ Pelos anjos! Que visão magnífica! _
exclamou Devi
Só então me dei conta da maneira lasciva como
ela olhava para Tempi.
_Que ousadia
ficar tirando a roupa na casa de uma donzela neste horário sr. ademriano... _
brincou ela.
Eu havia me
esquecido de como Tempi não tinha problemas com nudez diante de terceiros.
Aquilo fazia parte do modo como a cultura dele encarava a sexualidade. Resolvi
iluminar a situação para ele. Com as mãos disse:
Vestir.
Momento não apropriado. Diálogo sério. Atenção.
Ele me respondeu:
Mulher atraída por Tempi. Tempi atraído por mulher. Negar o desejo não
é da Lethani.
Um dos
momentos mais cômicos da minha vida? Talvez. Eu, um Ruh, estava ao lado de um
grandalhão com uma vozinha cômica enfiado numa armadura, um esquisitão meio
homem e meio máquina, uma trambiqueira de marca maior e um assassino
profissional que tencionava se agarrar a esta última a qualquer instante.
Realmente quis rir. Só faltou alguém começar a cantarolar “latoeiro
curtumeiro”.
Mas não ri.
Esvaziei meu pensar e entrei na Folha de Rodopio. Como encontrar um argumento
aceitável a Tempi para que a reunião pudesse continuar em paz? Eu raciocinei
sem regras, sem convenções, flutuando dentro da questão. Então vislumbrei a
resposta. Disse a ele:
Grande malfeitor. Bárbaro de muito longe. Veio para estas terras não de
navio. Seria descoberto. Veio pelo Ademre. Sem ser notado. Violou as fronteiras
dos ademrianos. Desrespeitou Tempi e seu povo. Deixar uma afronta como esta
passar não é da Lethani.
Tempi leu meus
gestos atentamente. Depois que terminei ele ficou quieto por alguns segundos.
Depois olhou por um breve momento para Devi, que roçava um dedo indicador nos
lábios, voluptuosamente. Então olhou novamente para mim.
Concordância
respeitosa _ disse em adêmico.
Então limpou
suor da testa, vestiu sua “camisa de sangue” e voltou a sua habitual
inexpressividade.
Devi me fulminou com os olhos, dizendo:
_Fique sabendo que
eu percebi tudo. Quando finalmente aparece um homem aqui você, que me rejeitou
mais de uma vez, trata logo de colocar sal em meu doce.
Francamente...
Edward Elric passou a mão cinzenta pelo
rosto, visivelmente desgastado.
_Sabem...
possuo um amigo chamado Armstrong. Sempre achei que ele seria a pessoa mais
estranha que eu encontraria na vida. Estava tremendamente errado. Vocês
conseguem ser tão estranhos quanto ele.
Todos ficaram
em silêncio. Tempi se pôs do lado de Alphonse, atrás de nossas cadeiras. Devi
se ajeitou, recruzou as pernas e voltou a mirar a nós quatro.
_Voltemos aos negócios. Ed, continue por
favor.
_Obrigado.
Como eu dizia... viemos para cá para descobrir o que estava acontecendo Após um
exame mais detalhado do material encontrado em todas as cenas de crime chegamos
à conclusão de que o responsável por estes crimes é o mesmo alquimista
criminoso que a muitos anos atrás fugiu de uma prisão de segurança máxima de
nosso país. Ele foi acusado de realizar transmutação humana e utilizava uma
quimera que expelia uma substância que paralisava temporariamente todo o
sistema nervoso para capturar suas vítimas com mais facilidade. Ele era
identificado apenas como O Alquimista Sem
Nome.
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